Uma Perspectiva Anarquista sobre o Egoísmo e o Coletivismo — Carvalho Filho

Uma Perspectiva Anarquista sobre o Egoísmo e o Coletivismo

Por Carvalho Filho

 

Certa vez, um amigo mencionou um tal de Stirner e demonstrou interesse por ele e outros protoanarquistas. Na época, interessado no que entendia como anarquismo, fiz uma pesquisa rápida sobre Stirner. “Como assim, anarquismo egoísta?!” Não fazia sentido para mim. Com minhas limitações, acabei desinteressado. Para mim, o egoísmo era uma falha humana, condicionada pelo modo de produção capitalista e, sobretudo, algo ligado à burguesia. Acreditava que, superado o capitalismo, o egoísmo humano desapareceria. Como comunista, entendia que deveria superar meu egoísmo e almejar em mim um Cristo. Claro, enquanto bolchevique, meu objetivo era ser um ditador aclamado, um grande líder da Nova Roma.

 

Contudo, quanto mais Stirner surgia em minhas leituras — seja em Marx, seja em Guérin —, mais curiosidade eu tinha sobre suas ideias, especialmente por causa deste último. Resolvi baixar O Único e Sua Propriedade, já pensando em criticá-lo. Mas, ao ler e refletir, mesmo discordando em vários pontos, fui motivado por algumas de suas linhas. Vi em Stirner pensamentos que já havia formulado, mas reprimido por considerá-los “errados”. Acreditei estar sozinho em certas posições e os descartei como imaturos. Queria solucionar o problema de os coletivos se tornarem autoritários, mas todas as soluções que encontrava me pareciam idealistas.

 

Por isso, tomei a iniciativa de escrever um texto que resumisse minhas reflexões, buscando autoafirmação e ruptura com o comunismo — especialmente o movimento autogestionário, para o qual pouco contribuí teoricamente, sendo mais um repetidor. Era um trabalho curto, com escrita artificial como outros que já havia feito, e encontrou poucos espaços para publicação. Mas aquilo não era suficiente! Pelo tom dogmático do texto, senti a necessidade de aprofundar os conceitos, algo que comprometeria o material original se eu o revisasse constantemente.

 

Assim, apresento este desenvolvimento. Estou disposto a discutir as teses propostas, com ênfase na base da minha ruptura: o autoritarismo do coletivo.

 

Não pretendo resgatar a exaltação idealista da individualidade, embora não a desconsidere. Em vez disso, proponho uma análise materialista sobre o que entendemos por ego e social. Afirmo, desde já, que o egoísmo é uma característica intrínseca da nossa natureza. Porém, esse egoísmo não deve ser confundido com arrogância, insensibilidade ou ganância. Por “egoístas”, me refiro à tendência universal de buscarmos atender às nossas próprias necessidades e interesses. Mesmo em atos aparentemente altruístas, como sacrificar-se por outra pessoa, é o ego que age, já que o indivíduo encontra satisfação, sentido ou propósito nesse gesto.

 

Somos egoístas porque nossa percepção e existência são limitadas pelo corpo e pela mente. A realidade só nos é acessível por meio da experiência direta, filtrada pela corporeidade — a materialidade de sermos organismos. Tais limites são intransponíveis e moldam completamente o indivíduo. Sendo assim, nossa visão do mundo e dos outros é determinada pelo contato com as bases materiais e relações que circunscrevem nossa existência.

 

A busca por satisfação pessoal é uma característica conatural do ser vivo, manifestada em ações voltadas para si mesmo. Antes de qualquer construção social e moral, o ser vivo age em função de sua preservação. Em todas as circunstâncias, mesmo as mais adversas, o egoísmo é quem guia nossas escolhas e ações. A vida é propriedade exclusiva do próprio indivíduo. Qualquer tentativa de submeter outra pessoa a interesses alheios é exploratória e, portanto, autoritária. A autoridade é sempre uma forma de exploração, já que quem exerce controle o faz para atender a seus próprios interesses.

 

Mesmo quando alguém se submete à autoridade, seja de forma voluntária ou por imposição, isso não nega o seu egoísmo. Pelo contrário, trata-se de um cálculo estratégico para garantir a sobrevivência e a comodidade do indivíduo. Submeter-se a uma hierarquia, seguir diretrizes ou aceitar imposições são indícios de uma adaptação influenciada pelas circunstâncias.

 

Por exemplo, se produzo um bem útil, não o faço em benefício da sociedade, mas para o sustento de mim mesmo. No entanto, se decido produzir em associação com outros, faço isso porque vejo nesse ato um meio de atender às minhas necessidades ao mesmo tempo em que contribuo para as necessidades dos outros. O desejo de comunhão ou de associação surge de uma necessidade individual, e o coletivo se forma como a convergência de múltiplos egos que, em determinado momento, encontram interesses comuns. O Estado serve ao interesse comum da burguesia; o conselho, ao do operário; as gangues, ao dos infratores.

 

Para compreender criticamente o coletivo como estrutura social, é fundamental, antes de tudo, afastarmo-nos de qualquer visão que o romantize. O coletivo, por sua prática, cumpre duas funções principais: organizar a sociedade e, ao mesmo tempo, exercer um certo grau de coerção sobre seus membros. Em outras palavras, busca criar uma unidade social suposta, mas, para isso, reduz a diversidade das vontades individuais a uma uniformidade necessária para manter o modo de produção dominante — seja ele comunitário, feudal, capitalista estatal ou privado.

 

Se relacionado à totalidade da sociedade, o coletivo é uma autoridade imposta a nós desde o nascimento. Crianças estão sob a autoridade de seus responsáveis, que, por sua vez, são submetidos às leis estabelecidas pelo modo de produção vigente. No entanto, a autoridade máxima que abrange todas as outras é a da própria natureza, contra a qual os primeiros coletivos lutaram. De forma geral, a luta contra a autoridade é uma luta pela sobrevivência.

 

Já o coletivismo é uma abstração — um discurso ideológico a serviço de interesses específicos. Trata-se da glorificação ingênua do coletivo, que, para seus adeptos, pode ser ajustado, mas jamais abandonado. Ele confere uma autoridade moral ao consenso social que o sustenta, tendo como principal função subordinar o indivíduo ao todo, influenciando suas vontades e ações conforme as necessidades de determinados grupos.

 

Para exemplificar, pense no conceito de dinheiro. Mesmo que ele não esteja fisicamente presente, o dinheiro ainda funciona como uma medida de valor em nossa sociedade. Da mesma forma, o coletivo existe como uma representação funcional: sua eficácia está na capacidade de alinhar vontades individuais a um padrão comum. Esse padrão, geralmente, é definido por aqueles que detêm a propriedade dos meios de produção e pelas instituições burocráticas, como o Estado, as empresas, os sindicatos e os partidos políticos. Por trás de várias justificativas, o coletivo busca apagar diferenças e conflitos entre interesses individuais, atendendo às demandas do controle centralizado.

 

Examinemos o coletivismo institucionalizado, seja em partidos, sindicatos ou movimentos sociais: ele funciona como uma ferramenta de administração burocrática, onde a expressão autônoma e dissidente é rechaçada em nome da eficiência sistêmica. O afiliado torna-se substituível, e sua singularidade é reprimida para garantir a continuidade do aparato coletivo. Como tal, nessas instituições, os interesses representados não são os de seus membros, mas sim os de seus líderes, secretários e presidentes, que se sobrepõem aos demais.

 

Quando essas instituições passam a depender das contribuições ativas de seus participantes, o valor gerado é apropriado pela burocracia, que transforma o coletivo em empresa e seus administradores em capitalistas, ajustando sua organização em favor da acumulação privada. Qualquer estrutura que busque alinhar múltiplas vontades individuais em uma única direção tende a gravitar em direção a esse fim.

 

Em qualquer âmbito social, há uma divisão entre uma categoria que produz e outra que se apropria do que é produzido. Essas são chamadas classes sociais, que, por sua própria condição, são inevitavelmente antagônicas. Os membros da classe apropriadora desenvolvem mecanismos para manter e intensificar a exploração como um meio de produzir e reproduzir suas próprias condições de vida, assim como os membros da classe produtora lutam para sobreviver.

 

Uma determinada organização rebelde surge de maneira espontânea, sem líderes. Nela, destacam-se figuras práticas, por suas qualidades e feitos, ou figuras teóricas, nas quais os demais membros buscam orientação. Certo, a organização ainda não perdeu seu caráter autônomo. Agora, essa organização está planejando um ato revolucionário e, para isso, pode ser necessária uma unidade de ação. Mas ainda é uma organização autônoma!

 

Porém, ao planejar ações de maior proporção, como uma revolução, a necessidade de coordenação e unidade cresce. Os membros podem optar pela democracia direta para decidir coletivamente. Dentro de qualquer organização social, as divergências de interesse são inevitáveis. Quando as decisões da maioria prevalecem, os membros da minoria são, de certa forma, obrigados a seguir a vontade majoritária para permanecerem no grupo. Com o tempo, as referências práticas e teóricas acumulam poder efetivo, consolidando-se como lideranças. A partir do momento em que há poder de uns sobre os outros, os interesses tornam-se antagônicos. Logo, a organização tende a se institucionalizar, estagnando-se e passando a buscar a exploração contínua dos membros pela classe burocrática.

 

Uma vez institucionalizada, a organização deixa de ser uma potência revolucionária e passa a também reproduzir os interesses da burocracia estatal. Esta, por sua vez, reproduz os interesses das classes dominantes, especialmente da burguesia. O coletivo organizado, assim, transforma-se em uma extensão do aparato estatal, replicando em menor escala a mesma ferramenta de opressão de classe.

 

Quando tal organização se expande e assume o controle do monopólio da força em escala regional ou nacional, seus líderes se convertem em governantes. Os outros membros permanecem como subordinados. Não se trata aqui dos mecanismos democráticos tradicionais, como eleições formais no Estado, onde disputas partidárias, ainda que limitadas, oferecem uma sensação de participação popular. O ponto em questão é a tomada direta do aparato estatal. Um exemplo disso é a Revolução de Outubro de 1917, quando os bolcheviques tomaram o poder na Rússia, posteriormente dando origem à União Soviética.

 

Nesse processo, ocorre uma fusão entre a burocracia do coletivo revolucionário e a burocracia estatal. O Estado passa a centralizar os meios de produção, que antes pertenciam à iniciativa privada, nacionalizando-os sob a gestão do partido. O mais-valor — o excedente do trabalho — deixa de ser apropriado pela burguesia tradicional e passa para as mãos da burguesia estatal. Então, o capitalismo privado é substituído por um capitalismo de Estado.

 

Diziam que estes Estados eventualmente definhariam, mas eles não apenas persistiram como reproduziram sua própria existência. Caso contrário, não seríamos forçados a cantar seus hinos, venerar bandeiras ou submeter-nos a instituições doutrinárias, punitivas e corretivas. Será que esperavam que a consciência das contradições sociais — a mesma que supostamente impulsiona revoluções — florescesse mais rapidamente pelo extermínio daqueles que a carregam? Se a história fosse um processo teleológico, então seria na passividade que nos emanciparíamos. Parece que, uma vez que nos tornamos conscientes das contradições do capitalismo, somos exilados da luta de classes.

 

Por isso, não busco um propósito universal. Relações de produção e formas de organização social surgem, se desenvolvem e desaparecem conforme as condições materiais mudam. Qualquer tentativa de nos unificar em torno de um objetivo comum é, na verdade, a imposição de um interesse particular como norma universal. Devemos eliminar aqueles que se opuserem ao comunismo quando ele estiver em marcha? Ou será que algum “super-homem”, legitimado por sua suposta superioridade científica, educará e disciplinará as massas para o bem comum?

 

Mesmo em experimentos históricos como a Comuna de Paris em 1871, frequentemente exaltada como modelo de autogestão social, o “bem comum” teve um custo de vidas. Um autogoverno, não importa quão idealizado, ainda é um governo. Se esse é o objetivo dos comunistas, então os anarquistas estão mais distantes deles do que se costuma dizer. Na Comuna, não apenas agentes repressores do Estado foram executados, mas também dissidentes, como o anarquista Gustave Chaudey.

 

A violência, sobretudo a que mata, é inerentemente autoritária, pois viola a única autoridade legítima: a do próprio corpo. No entanto, reconheço e apoio a violência contra aqueles que nos oprimem — patrões, policiais, burocratas. Essa é uma violência libertadora, que não busca submeter, mas reivindicar nossa autonomia. Não aceito ser mandado, vigiado, coagido, revistado, injuriado, interrogado, encarcerado, julgado ou sentenciado.

 

Se cometo um assalto, uso a violência para expropriar algo que, naquele momento, tem valor de uso para outra pessoa, privando-a desse bem. Este ato é um exercício de coerção, uma imposição da minha vontade sobre a de outra pessoa. Ainda que minhas circunstâncias possam justificar a ação, ela carrega inevitavelmente um caráter autoritário, pois instaura uma hierarquia momentânea onde minha urgência sobrepõe-se à sua posse. Por outro lado, ao furtar algo que não está, naquele momento, sendo utilizado ou cumprindo uma função de valor para outrem, aproprio-me de uma matéria que, em sua essência, não pertence a ninguém. Neste caso, a ação deixa de ser coercitiva, pois não há um conflito direto de interesses. O objeto furtado estava inerte, sem desempenhar um papel imediato na satisfação das necessidades ou vontades de outro indivíduo.

 

Até mesmo amizades, coleguismo e família podem ser considerados formas de coletivos, assim como relacionamentos amorosos — sejam monogâmicos, poligâmicos ou agâmicos. Em todos essas relações, trocas de interesses envolvem diferentes graus de autoridade. Essas trocas, ainda que permeadas por tensões, permanecem equivalentes enquanto satisfazem todas as partes, seja por desejo, conveniência ou necessidade de subsistência. No entanto, há momentos em que um indivíduo exige mais e o outro se submete; em outros, todos os envolvidos mantêm relativa autonomia.

 

Não há incompatibilidade entre buscar a própria satisfação e conviver com outros, mas essa coexistência carrega conflitos insolúveis. Não demonizo as associações; pelo contrário, unamo-nos para vandalizar as ruas e ocupar os espaços! Desde que, é claro, essas alianças sejam livres de imposições, momentâneas e se dissolvam antes que a espontaneidade se perca na burocratização e no controle organizacional.

 

Independentemente do modo de produção dominante, a emancipação satisfaz-se no indivíduo. Não há projeto redentor que ultrapasse essa esfera. A ruptura está na rejeição contínua dos consensos legais e sociais que nos regem, sem substituí-los por novos regimes governamentais. Nenhuma força externa pode me emancipar, assim como nenhuma instituição pode me representar. O fardo da liberdade é pessoal e intransferível; não é nem uma dádiva do Estado nem um acordo com o coletivo. Proudhon, apesar das contradições de seu anarquismo inicial, intuiu isso há quase dois séculos.

 

Que não nos resignemos à promessa de uma anarquia futura, como o crente se apega à ilusão do paraíso, enquanto permanecemos subjugados no presente. Anarquia, como eu a entendo, é a negação de toda autoridade, e é uma práxis imediata. É a manifestação do ego que rejeita qualquer forma de submissão e reivindica sua autonomia. Não se trata apenas das ações dos ilegalistas, anarcopunks ou insurrecionistas; anarquia é o ato cotidiano de resistir à autoridade.

 

As sociedades, ao se dedicarem a desvendar as causas do crime, raramente se perguntam: por que o crime é crime? Tais definições são ditadas por aqueles que se colocam no papel de juízes, legisladores de uma moralidade que serve à perpetuação da ordem. Mas o papel de julgar pertence a cada um de nós. Se possuímos ética, princípios e responsabilidades, que estes sejam fruto de nossa própria reflexão e não imposições alheias. Nenhum indivíduo tem a prerrogativa de ditar o que é correto ou desejável para outro. Essa é uma decisão que pertence exclusivamente a cada ser. Se sua família insiste que você siga o caminho da educação formal, você não é obrigado a obedecer. Se a sociedade dita expectativas com base em seu sexo biológico, você não precisa segui-las. Isso se aplica a qualquer imposição — cultural, religiosa ou política.

 

Reflita. Questione-me se julgar necessário; refute cada palavra, ou aceite-as somente se resistirem ao crivo de sua consciência. Exerça sua liberdade sem reservas, pois a prioridade de cada indivíduo é a si mesmo. Escrevo isso porque tenho motivos, mas estou igualmente disposto a debater.

 

Obrigado.