Notas para os Novos Ilegalistas
Carvalho Filho
Passei algumas das minhas horas de repouso [meses sem escrever!] lendo esses ensaios espalhados pelos sites anarquistas – com uma predileção estética pelos contemporâneos, claro. Tantos tediosos textos com linguagem artificial, repetindo jargões redundantes; não sei se os militantes concordaram em tornar nossos panfletos automáticos e frios, livres do libido da luta, ou se foram gerados por ChatGPT (aí não os culpo, também o usei nos meus trabalhos anteriores). No meio daquele conteúdo plataformista e especifista, morri de prazer ao ver um intitulado “Para os Novos Ilegalistas” de Elisa Calomeno. Ora, fora as poucas traduções (algumas pelas quais me responsabilizo), é raro vermos qualquer produção teórica de cunho individualista dentre o anarquismo que diz respeito ao nosso idioma. Naquela escrita desesperadamente anárquica e adolescente, na tentativa de criar algo novo, desbota um espírito impulsivo que inquietou a minha mente e reengorda minhas paixões: o da Inveja.
Há, nos seus primeiros parágrafos, uma alusão intuitivamente indireta aos setecentistas debates contratualistas. A autora faz uso da figura do animal selvagem e da do animal doméstico; o primeiro representa o humano insurgente, o segundo representa o obediente. O que mantém o selvagem na condição de selvageria são suas emoções primitivas. A raiva, partindo de uma observação empírica da fauna, seria umas dessas emoções, compartilhando o coração com o prazer. Aversamente, a raiva teria sido reprimida e o prazer castrado no animal doméstico. Esse segundo, segundo a autora, só aceita isso porque vai comer, vai se vestir, vai ter um teto. Mas, de modo algum, o escravo aceita essa troca por seu degrado. Ele é forçado. O cão sabe que se se comportar, irá comer, sim, porém é uma questão secundária. Para ele, antes de aceitar a troca esteve em uma posição de coagido, talvez por força, chantagem, crença… O conforto é a consolação do prisioneiro, não a causa da sua prisão. Quem troca a própria comodidade como causa primária é quem está com o poder.
Dado que o ser humano é, em sua maior parte, cultural e que, também assim, as crianças são educadas, não haveria uma naturalidade nesse comportamento? A criança obedece a mãe, a mãe deixa ela na escola e de noite vão pra igreja. Sobra algum espaço para que a criança desenvolva sua pura individuação? Se nossa práxis é composta por informações exteriores e a interpretação psíquica das mesmas, o que um garoto entende sobre o Ego? Fato é que essas noções filosóficas provêm de herança burocrática. O que buscamos é anti-natural! Se tudo o que é filosófico, aristocrático, objetiva a continuidade da civilização, o que nossa apropriação significa? Então; se o criminoso é um mal necessário para justificar a burocracia estatal – por isso das Leis – por que, simplesmente, não assaltamos o Estado? Como? Por que? Sim, não há razão, o nosso crime é fruto do cetiscimo e não da ignorância. Bem conhecemos as Leis e por isso a ignoramos. Somos os mais domésticos e os menos selvagens.
Sou partidário de um Novo que surge a partir de um ódio ao velho, o amor ao velho faz do Novo previsível. Há uma cela, pois o velho foi um meio construído pela sociedade; e aquelas velhas vontades alheias permanecerão qual fantasmas sobre ti. O Novo não foi tocado pela sociedade, é inteiramente teu! E quanto mais odiar o mundo e a forma natural do teu próprio indivíduo, mais de si mesmo será. Ama-se aquilo que quer se tornar. Pra que amar o espermatozoide que o seu corpo foi – um quase objeto? Gosto da estética do passado, rememoro o passado para fins de continuidade, só não me apego a ele. Apego é amor. Tem quem diz que o seu prazer pessoal ficou no passado: paixão presente que poderá se voltar para o futuro! Idaí que o crente sonha com o céu e o comunista com a autogestão? Sonham com o velho, com o que foi idealizado por outrem. O comunista só consegue se o sonho dele for a vontade de outros (sonho ≠ vontade). A salvação do crente é individual, para isso ele precisa seguir as determinações escritas pelos velhos. E aqui está a tragédia em nos chamarmos de anarquistas (pegamos deles o anarquismo, o ilegalismo, o individualismo, oras), “a anarquia talvez nem pudesse ter nome” [e em nome de um Novo surgem libertários, autonomistas, autarquistas].
Devo também dizer que não vejo vantagens em reutilizar, mesmo oportunisticamente, a palavra “socialismo”. É um nome que, inegavelmente, carrega a sociedade, que nos opomos, em seu corpo. O intuito é atrair comunistas rebeldes? Dar exemplo servirá. Não chamemos de socialismo o que é, na verdade, amizade. E do agorismo, bem, lembro de um coletivo cypherpunk conterrâneo, não tenho certeza se continuam ativos. Vale dar uma olhada. Há um moralismo expressivo na obra de Konkin e há, mesmo assim, algo que possa prestar nela ou na de outros autores. Apenas idólatras aceitam e tomam como jargão a totalidade de um argumento sem fazer questão. Eu também tive esse ânimo militante. Houve, portanto, leituras desagradáveis, apesar disso, a absorção do texto é nossa e não do autor. Por fim, me conterei por aqui, para evitar a vergonha de ultrapassar em número de palavras o texto no qual me baseio.
Feliz Natal. Renasce Sol Invictus.